04 abril 2012

Vida simples como estilo


Vida simples como estilo

Na cultura do consumo, falar sobre desapego soa como heresia.
É improvável que qualquer dos leitores desta coluna venha a morrer de fome, esteja sem um teto sobre sua cabeça ou não possa sair à rua por absoluta falta do que vestir. Hoje, a nossa dificuldade tem a ver bem mais com a concepção do que seria uma vida simples do que com lamúrias pela falta do básico.
Pode parecer uma suposição bizarra, mas alguns cristãos conseguem afirmar o seu amor por Jesus Cristo mesmo quando atribulados, angustiados, perseguidos, ameaçados e até mesmo diante do cenário da morte. No entanto, quando a realidade é de escassez, o comportamento muda. Somos capazes de suportar adversidades, desde que estejamos devidamente alimentados, vestidos e com as contas pagas.
Jesus advertiu aos seus seguidores de que eles não deviam ficar ansiosos quanto ao que comeriam ou vestiriam, nem tampouco onde viveriam. Numa interpretação absolutamente livre, é como se o texto de Mateus 6.25-34. “Não estejam ansiosos por coisa alguma, inclusive em relação às suas necessidades básicas. Não se inquietem com o dia de amanhã”. Aos cristãos de Roma, o apóstolo Paulo nomeia os motivos alegados por alguns para reclamar do aparente descaso de Deus e, portanto, justificar seu afastamento do Senhor.
Fome, nudez e despejo aparecem como realidades possíveis para os seguidores de Jesus a partir do livro de Atos. Não há qualquer contradição com os quatro evangelhos; o fato é que muitos cristãos sofreram na pele a escassez por estarem envolvidos com os valores do Reino de Deus. Jesus foi claro ao afirmar que, caso seu Reino seja posto como prioridade, o restante nos será acrescentado. Contudo, a adesão aos valores do Reino passa, necessariamente, por uma vida simples. Sofremos muito numa sociedade fundamentada nas leis do consumo. Na atualidade, o supérfluo, se bem embrulhado, ganha apelo de básico. Como ficamos infelizes porque nossos hábitos sofisticados não são compatíveis com o nosso poder de compra! Como ficamos contrariados porque nossos valores nos impedem de fazer negócios inescrupulosos, mas rentáveis, num mercado de mãos e rosto invisíveis!
Não se trata de admitir que uma cabana de palha, um cantil de água e um pedaço de pão sejam o suficiente. Nem de culpar os afortunados que moram bem, mantém adegas com vinhos da melhor qualidade e comem pães recheados com as mais sofisticadas iguarias. Acontece que as nossas chamadas “necessidades materiais” nem sempre resistem a uma análise criteriosa da verdadeira necessidade que temos delas. Convém refletir: O que seria o básico dos recursos materiais dos quais precisamos? Que itens estamos planejando possuir? E, dentre estes, quantos são realmente necessários? Geralmente, quando pensamos dessa maneira, descobrimos que poderíamos viver muito bem sem aquelas coisas que achávamos que eram fundamentais só depois de as consumirmos.
De que maneira os nossos interesses se relacionam com o Reino de Deus? E se avaliássemos a lista do que consideramos nossas necessidades de acordo com os interesses de Cristo em nossa vida? Muito provavelmente, se olharmos nossa vida sob a perspectiva dos valores ensinados pelo Senhor, seremos capazes de fazer listas muito mais sensatas. Então, seremos capazes de reconhecer o básico e por ele darmos graças; seremos habilitados a planejar o futuro sem ansiedade; e, finalmente, seremos lúcidos o suficiente para nos desapegarmos do supérfluo.
A verdade é que a falta de algo não pode ser interpretado como ausência do amor de Deus por nós. Na dimensão do Reino sobre o qual falou Jesus e repercutiu o apóstolo Paulo, a ansiedade é visceralmente controlada quando aprendemos a viver para Deus e, portanto, descobrimos o outro. Aí, adotaremos a generosidade como estilo de vida e teremos o quintal sem cerca, a mangueira sem lacre de propriedade privada e a flor amarela na janela – aquela que, segundo Cecília Meireles, é regada não para ser vendida, mas para que viva e faça sorrir quem passa.
Na cultura do consumo, falar sobre desapego pode soar como heresia. Mas heresia social não chega a ser ofensiva a Deus. Portanto, tenha paz para viver uma vida simples numa sociedade que nos convida ao sofisticado, nos leva à insatisfação e nos subjuga pelo consumo. Bem-aventurados seremos se tivermos a capacidade de admitir a possibilidade de sermos como Paulo descreveu: “Entristecidos, mas sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas possuindo tudo” (II Coríntios 6.10).